A Transição - Parte 3 de 4



Em se tratando de morte natural, resultante da extinção das forças vitais pela idade ou pela doença, o desprendimento opera-se gradualmente; para o homem cuja alma se desmaterializou e cujos pensamentos se destacam da atração das coisas terrenas, o desprendimento quase se completa antes da morte real, isto é, ao passo que o corpo ainda tem vida orgânica, a alma já penetra a vida espiritual, apenas ligada ao corpo por elo tão frágil que se rompe sem dificuldade com a última pancada do coração. Nesta situação o Espírito pode já ter recuperado a sua lucidez, de modo a tornar-se testemunha consciente da extinção da vida do seu corpo, considerando-se feliz por tê-lo deixado. Para esse a perturbação é quase nula, ou antes, não passa de ligeiro sono calmo, do qual desperta com indizível impressão de felicidade e esperança.


No homem materializado e sensual, que mais viveu para o corpo que para o Espírito, e para o qual a vida espiritual nada significa, nem sequer lhe toca o pensamento, tudo contribui para estreitar os laços materiais, que ligam a alma à matéria, pois nada contribuiu para os relaxar durante a vida, e, quando a morte se aproxima, o desprendimento, conquanto se opere também gradualmente, demanda contínuos esforços. As convulsões da agonia são indícios da luta do Espírito, que às vezes procura romper os elos resistentes, e outras vezes se agarra ao corpo, do qual uma força irresistível o arrebata com violência, molécula por molécula.


Quanto menos vê o Espírito além da vida corporal, tanto mais se apega à vida material, e, assim, sente que ela lhe foge e quer retê-la; e, em vez de se abandonar ao movimento que o arrasta, resiste com todas as forças e pode mesmo prolongar a luta por dias, semanas e meses inteiros.


Certo, nesse momento, o Espírito não possui toda a lucidez, visto que a perturbação há muito tempo se antecipou à morte; mas nem por isso sofre menos, e o estado de vácuo mental em que se encontra, e a incerteza do que lhe sucederá, agravam-lhe as angústias. A morte chega, e nem por isso está tudo terminado; a perturbação continua, ele sente que vive, mas não sabe se essa vida é material ou espiritual; luta, e luta ainda, até que as últimas ligações do perispírito com o corpo se tenham de todo rompido. A morte pôs termo à moléstia que ele sofria, porém, não lhe sustou as consequências, e, enquanto existirem pontos de contato do perispírito com o corpo, o Espírito ressente-se e sofre com as suas impressões.


Quão diversa é a situação do Espírito desmaterializado, mesmo nas enfermidades mais cruéis! Sendo frágeis os laços fluídicos que o prendem ao corpo, rompem-se suavemente; e, além disso, a confiança do futuro, que ele já entrevê mentalmente e às vezes mesmo de maneira real, como sucede algumas vezes, o faz encarar a morte como libertação e as suas consequências como prova, advindo-lhe daí a tranquilidade moral e a resignação que lhe amenizam o sofrimento. Após a morte, tendo sido rompidos os laços de maneira instantânea, nem uma só reação dolorosa o afeta; ao despertar sente-se livre, disposto, aliviado por um grande peso e muito feliz por não estar mais sofrendo.


Na morte violenta as sensações não são precisamente as mesmas. Nenhuma desagregação inicial tendo começado previamente à separação do corpo e do perispírito, a vida orgânica em plena exuberância de força é subitamente aniquilada. Nestas condições, o desprendimento só começa depois da morte e não pode completar-se rapidamente. O Espírito, colhido de surpresa, fica como que aturdido e sente, e pensa, e acredita-se vivo, prolongando-se esta ilusão até que compreenda o seu estado.


Esse estado intermediário entre a vida corporal e a espiritual é um dos mais interessantes para ser estudado, porque apresenta o espetáculo singular de um Espírito que julga material o seu corpo fluídico, experimentando ao mesmo tempo todas as sensações da vida orgânica. Há, além disso, dentro desse caso, uma série infinita de modalidades que variam segundo o caráter, os conhecimentos e progressos morais do Espírito. Para aqueles cuja alma está mais purificada, a situação pouco dura, porque já possuem em si como que um desprendimento antecipado, que a morte, mesmo súbita, não faz senão apressar.


Outros há, para os quais a situação se prolonga por anos inteiros. É uma situação essa muito frequente até nos casos de morte comum, que, nada tendo de penosa para Espíritos adiantados, se torna horrível para os atrasados. No suicida, principalmente, excede a toda expectativa e essa situação se faz ainda mais penosa. Preso ao corpo por todas as suas fibras, o perispírito faz repercutir na alma todas as sensações daquele, com sofrimentos cruciantes.


- Texto retirado do livro “O Céu e o Inferno” - Allan Kardec / 2ª Parte - Cap. I

- Nota do blog Espírita na Net – Edição realizada dos textos retirados do livro “O Céu e o Inferno”, das editoras FEB (40ª Edição) e LAKE (12ª Edição - Com tradução de J. Herculano Pires).