Viviane iniciou a sua comunicação deixando transparecer, através de lágrimas, uma vida repleta de amarguras. Nascera com os braços mutilados. Seu pai a criara em um prostíbulo no qual trabalhavam suas irmãs no exercício ingrato de mercadejar os corpos. Ela, mesmo com os membros superiores atrofiados, mantida às escondidas em quarto nos fundos do bordel, era às vezes violentada por clientes bêbados, sob a aquiescência do pai, que parecia odiá-la.
Ela também o odiava, pois em suas bebedeiras abusava dela sexualmente, atitude incompreensível e imperdoável, segundo sua opinião de mulher ultrajada.
Diante de tanto sofrimento, adentrou o túmulo enlouquecida, sendo recolhida por amigos espirituais que, depois de demorado tratamento, a trouxeram para uma catarse.
- Você acredita que Deus é justo? - perguntei-lhe
- Acredito! Mas não entendo como a sua justiça age.
- Se você admite a existência de um Deus justo, deve acreditar que a causa do seu sofrimento é justa. Isso lhe parece lógico?
- Sim.
- Já lhe disseram que vivemos muitas existências sobre a Terra?
- Já me falaram sobre reencarnação, mas não tive coragem de saber o que fiz no passado.
- Pois bem! Se as causas do seu sofrimento não se encontram na existência em que se chamou Viviane, teremos que voltar no tempo a fim de encontrarmos o núcleo do seu problema.
- Não! Não quero! Tenho medo! Não quero saber o que fiz àquele homem ou o que fez a mim.
Viviane já tentara a regressão no plano espiritual e não conseguira. Encontrava-se na delicada faixa do sofrimento embrutecido, misto de mágoa e dor. Mais um pouco e resvalaria nos despenhadeiros do ódio. Então eu a desafiei tentando tirá-la dessa perigosa situação.
- Você me parece uma pessoa corajosa! Por que então, no lugar de se fazer de vítima, alimentando a autopiedade, não recorre à sua fibra de mulher e age? A regra da casa é: Estando caído, levanta-te! estando em pé, segue adiante!
Iniciei a magnetização advertindo-a de que seguisse mentalmente a música, sempre no ar durante toda a reunião. Haja o que houver, não a perca, pois ela a levará ao passado, insisti.
Viviane obedeceu e pouco a pouco pareceu despertar em outro cenário, longe daquele catre onde vivera.
- Escravo teimoso! Ele é meu! Sua função é satisfazer-me em minhas necessidades!
- Por que você julga que esse escravo lhe pertence?
- Porque o comprei! Tenho necessidades. Para isso ele serve.
- Como é o seu nome?
- Catarina.
- Em que país você mora?
- Por que você me faz tantas perguntas? Quem pergunta tanto só pode ser um espião!
- Sou seu amigo. Quero apenas entender a sua situação para poder ajudá-la.
- Moro na Inglaterra. Sou de família nobre. Obrigaram-me a casar com aquele velho para aumentar nossas riquezas. Por isso tenho esse escravo que me satisfaz.
- De onde veio o escravo?
- Da Índia. Não quero que ele se envolva com nenhuma outra mulher. Eu já o adverti. Se me desobedecer, ele morre.
- Vamos um pouco para adiante, Catarina. O que aconteceu com o escravo?
- Eu mandei castrá-lo e em seguida matá-lo. Ele teve o atrevimento de me desobedecer.
- E o seu marido?
- Era um fraco! Suicidou-se quando soube do ocorrido.
- E como foi a sua velhice?
- Só! Abandonada. Todos me abandonaram por causa dessa maldita doença (hanseníase).
- Muito bem Catarina! Lembre-se de tudo quanto reviveu e volte para o hoje.
Ainda chorosa, ela comentou:
- Quero esquecer! Quero esquecer! Por favor, faça-me esquecer!
- Agora você já sabe a verdade. A verdade, segundo Jesus, liberta o espírito das amarras da ignorância.
E ainda sob a ação dos acordes de Chopin, meu velho amigo Falcão aplicou-lhe um passe, no que ela foi mansamente adormecendo.
Tudo levava a crer que senhora e escravo haviam se reencontrado. Infelizmente, ambos mais escravos que libertos. O sofrimento continuaria a trabalhar suas almas até que a paz tivesse condições de quebrar-lhes, de vez, as algemas.
Da Obra: Doutrinação - Diálogos e Monólogos
Autor: Luiz Gonzaga Pinheiro